"No tempo em que a vida era um sonho que passava à nossa frente, cada dia uma nova página de um livro sem fim, eu tinha um ídolo. Não, não era o Eusébio, que estava sempre aleijado e até foi jogar para o Beira-Mar. Nem o Yazalde, apesar dos mais de 40 golos que marcou só num ano. Tão pouco o Pélé. Sem o Jairzinho e o Rivelino, o Tostão e o Gerson, o que valia o Pélé?. Acima desses estava o Cruyff, que comandava uma vistosa equipa de gadelhudos com nome apelativo e equipamento bonito. Mas o meu ídolo mesmo era o Miro. O Miro era de carne e osso, morava mesmo ali ao lado da escola, tinha só mais 2 anos do que eu e era tão bom como o Cruyff...que digo eu...era melhor do que o Cruyff. O Miro fazia o que queria com a bola, o Miro jogava com os dois pés, fintava com os dois pés, fintava um, dois, três, todos os que lhe aparecessem à frente, o Miro olhava para um lado e passava a bola para o outro, o Miro marcava golos de todas as formas e feitios, com os pés, com a cabeça, em jogada corrida, de livre directo (ou até de livre indirecto....ele encarregava-se de pôr alguém de confiança a dar um toquezito para o lado).
Aos 11 anos, no 2º ano do Ciclo Preparatório, tive a sorte de ficar na mesma turma do Miro (depois de um ano a penar numa turma de moços da aldeia, em que ninguém tinha jeito para a bola). A turma dos caxineiros. Foi um regalo. Ganhámos a toda a gente. Não só em futebol como no resto. Até no basket o Miro era melhor do que os outros. No futebol, a concorrência era enorme, mas lá consegui um lugarzinho na equipa. Lembro-me bem da grande final. Era contra uma turma de "vileiros", comandados por um tal Quim Vitorino, rapaz encorpado, já com os seus 14 anos (como o Miro), que alguns teimavam que era ainda melhor do que o Miro. Durante uma semana não se falou de mais nada. O Miro dava as ordens. Tu jogas à esquerda e tu à direita, tu na defesa e tu no ataque à minha frente. E tu ficas preparado para entrar se alguém se magoar. Foi a minha primeira final....e foi a minha final de sempre. Goleámos os "vileiros".....7-3, 8-3, ....a memória aqui atrapalha-se, lembro-me que até eu marquei um golito....mas a prova estava feita. Em futebol, os caxineiros eram os melhores e o Miro era definitivamente o maior.
Acabado o ciclo, perdi o contacto com o Miro. Soube que o pai o obrigou a ir para o mar e nem Varzim nem Rio Ave, não havia tempo para treinar. Ao contrário de muitos dos que estiveram naquela final, a começar por mim que, apesar de bem mais fraquinho, lá fiz a minha carreira de futebolista jovem no Rio Ave, de que tanto me orgulho, e a acabar no Quim, que chegou a Campeão Europeu em Viena, ao Miro roubaram-lhe a alegria de jogar futebol na idade em que todos gostamos de jogar futebol. Passados quase 10 anos, o Miro apareceu de repente a jogar no Varzim. Apenas 1 ou 2 anos depois de se ter inscrito oficialmente pela 1ª vez no Malta (segundo rezam os jornais) já como sénior. Cheguei a vê-lo 2 ou 3 vezes mas o encanto tinha-se perdido. Era um defesa-esquerdo razoável, rápido e raçudo, mas os sinais do Cruyff tinham-se desvanecido. E entretanto tinham aparecido o André e o Vitoriano e era desses que se falava. Ainda esteve uns anos no Varzim. Passou pelo Aves e acabou no Oliveira do Bairro. E voltou ao mar.
Há 2 ou 3 anos vi o Miro num café das Caxinas. E o Miro continuava igual....e lembrava-se de mim e tratou-me pelo meu nome, o que me deixou orgulhoso. Foi a última vez que o vi. Hoje o Miro deixou-nos. Desapareceu na porra do mar, o mar traiçoeiro que já tanto o tinha castigado. E eu chorei. Um bocado do meu sonho ficou para sempre no mar frio da Bretanha."
JMF